terça-feira, setembro 6

O meu primeiro “Derby” em Alvalade (Parte I)

Naquela noite, Alvalade dava a imagem das imediações de um circo Romano em dia de combate de gladiadores. O estádio estava a rebentar pelas costuras. O folclore da semana transferira-se para aquela zona da cidade e dentro daquele Coliseu dos tempos modernos, há muito que tinham começado os habituais mimos e “jogos florais” entre as claques de Sporting e Benfica. O cheiro das bifanas, coiratos, tabaco e maconha, embrenhados na roupa, misturavam-se com o colorido das cores dos clubes em disputa, enquanto milhares de almas, muitas delas toldadas pela cerveja consumida às litradas, procuravam a porta de acesso ao interior da arena, torneando os grupos de comentadores de ocasião, histórias visionárias acerca do resultado final, candongueiros, carteiristas e borlistas de ocasião. A visão deste ambiente não era para mim novidade. Não era a primeira vez que visitava o Estádio José de Alvalade e o ambiente não me era de todo desconhecido. Mas, ao contrário das visitas anteriores, esta era a primeira vez que ia a um jogo de futebol como agente de polícia, enquadrado num policiamento desportivo. Era o meu primeiro serviço de piquete na Divisão e como tal, estava afastado das escalas de remunerado, passando assim a integrar as secções destinadas a reforçar os acessos e posteriormente a reforçar o interior do recinto, prontos para acorrer a alterações graves da ordem.

Já estavam decorridos alguns minutos do início da partida quando o subchefe, comandante da secção, recebeu ordens para que nos dispuséssemos no interior do recinto, ao longo das vedações do topo sul do estádio. Pela primeira vez na minha vida a minha visão do interior de um grande jogo, ia ter uma perspectiva do relvado para a assistência e não ao contrário, como estava habituado. Se a imagem, em dias de jogos importantes, é por demais impressionante, com todo o clima gerado em volta de um acontecimento desportivo, a visão dali, a partir do relvado, faz com que nos sintamos pequeninos. Compreendi de imediato, de onde advinha aquela sensação de grandiosidade, quase impunidade que se sente, quando se está no meio daquela mole imensa de gente em relação aos minúsculos intervenientes no espectáculo que deambulam pelo recinto de jogo e área limítrofe. Só de olhar impressiona. Ali, bem à minha frente, encontravam-se uns milhares de furiosos adeptos, que há minha entrada me presentearam, juntamente com os meus camaradas, com uma monumental assobiadela, secundada de uma série de impropérios, insultos e ameaças, em tom de desafio e desfolhando um autêntico mostruário de gestos obscenos que iam da clássica representação fálica com o dedo às mais arrojadas referências a actos de sodomia, algumas com exibição dos atributos genitais. Animais, pensei eu para os meus botões; mas tinha que manter a calma e deixar pedidos de explicações para segundas núpcias. A ordem era clara. Não perder de vista o que se passava dentro das bancadas e evitar a todo o custo a tentação de apreciar a evolução dos jogadores em campo, sob pena de ser vítima de agressão e para controlar os mais atrevidos, evitando tentativas de invasão de campo ou detectar escaramuças entre a assistência.

À meia hora de jogo, já o terreno junto a mim estava pejado de todo o tipo de objectos possíveis e imagináveis. O espólio depositado na pista de tartan ia do mais banal dos isqueiros descartáveis aos mais variados tipos de rádio-transístores (melhor, o que deles sobrava), passando por uma variedade de peças de fruta, que dariam, passo o exagero, para fornecer a cantina dos sem-abrigo dos Anjos por várias semanas, garrafas de água, algumas com o resultado da destilação de bexigas mais aflitas, guarda-chuvas, etc. etc. Felizmente que entre estes “atletas”, dignos de helénicos discóbolos, esses atributos não se aplicavam a outro tipo de lançamentos, de cariz mais nojento, que se ficavam a meio caminho nas suas curtas trajectórias entre a boca e o ponto onde nos encontrávamos. Talvez com um caroço de abrunho ou ameixa fossem mais eficazes, mas essas munições, destinavam-se a fazer lastro aos frutos arremessados manualmente. Quanto ao restante do espectáculo, já que mal dava para espreitar a jogatina, ia apreciando o ambiente que se desenvolvia em redor. As caras transfiguradas a cada jogada perdida, os gritos a cada golo falhado, ondeavam pela massa adepta, ondeada a cada instante pelos chorrilhos decadentes e do mais baixo pasquim dirigidos em especial aos árbitros, jogadores e claro, aos adeptos adversários. Muito bem, assim, já não era o único a ser presenteado com tão graves espinhos à minha “entrada em campo". O ambiente era de inferno, um ensurdecedor inferno. A batalha estava no auge.

- Então pá, está tudo bem? – perguntou aos berros o subchefe, apercebendo-se da minha surpresa perante o espectáculo.

- Porra, esta merda mete medo, chefe!... Se saem dali para fora, aqueles tipos vão dar um trabalho do caraças!!... - gritei eu.

- Reza para que não saiam... reza...

O árbitro apitou para o descanso...

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