TIMOR - Os dias de terror
Vi-os subir pela rua, e nunca pensei que recomeçasse aí o terror em
Timor-Leste. Eram quatro, caminhando calmamente. Com autoridade,
cruzaram a barreira de mais de 200 polícias que nos guardavam, a nós, jornalistas
refugiados no hotel Mahakota. Sentados no «hall» exterior, seis ou sete, na
sua maior parte de cadeias internacionais, fumávamos uns cigarros e
discutíamos uma forma de sairmos dali e rodar pela cidade. Lembro-me que,
quanto mais eles se aproximavam, mais olhávamos uns para os outros.
No momento em que eles passaram a barreira e lhes vimos as armas nas mãos,
uma espécie de despertar estupefacto levou-nos a entrar no hotel e a
subirmos a escada que leva ao primeiro andar. Os quatro membros da milícia
Aitarak de Díli subiram ao «hall», colocaram-se em posição e começaram a
disparar sobre nós, rebentando com os vidros das portas. «Eles querem-nos e
não há aqui ninguém para nos proteger», disse o «cameraman» da Reuters.
Lembro-me de pensar que há apenas umas escassas horas atrás a ONU anunciara
que 78,5% dos timorenses tinham escolhido a independência e que eu contava
estar naquele momento encostado a uma esquina de uma rua a tirar notas sobre
a festa deste povo finalmente livre. Durante a noite passada, num Mahakota
abandonado e barricado, cada um tomou a sua opção. Para mim havia condições
para ficar, desde que conseguisse chegar ao quartel da UNAMET.
De manhã cedo, juntamente com Luciano Alvarez do «Público», o Hernâni
Carvalho da RTP e o Jorge Araújo do «Independente», com o João, o meu
motorista, ao volante do seu velho Land Rover verde alface, apanhámos uma
boleia de um comboio de viaturas do Alto Comissariado para os Refugiados e
avançámos por uma cidade deserta e patrulhada pelas milícias. Finalmente,
estávamos dentro do quartel-general da UNAMET, onde se respirava o cerco das
rajadas de metralhadora, disparadas de 10 em 10 minutos.
Os polícias e os funcionários civis não conseguiam esconder a raiva e a
impotência perante o recomeço da violência armada. Lá fora começaram a subir
as primeiras colunas de fumo provenientes de casas incendiadas. Rapidamente
se multiplicaram. Díli ardia. Comecei a telefonar às pessoas que tinha
conhecido, timorenses de sete metros de altura que me tinham contado a
história do seu povo e do seu país. O velho padre jesuíta João Felgueiras, o
activista dos direitos humanos Aniceto Guterres, a resistente Maria
Olandina, e todos os outros anónimos cidadãos de uma nação sem soberania. Do
outro lado da linha respondeu-me o silêncio.
Compreendi que as milícias e os indonésios tinham estendido uma cortina
negra sobre a operação que desencadeavam em todo o território. Pouco depois
das sete da tarde, já com a noite instalada, o tiroteio de metralhadora
rebentou mesmo ao lado do quartel-general. Só compreendi o que se passava
quando os gritos soaram mais forte do que as rajadas: a polícia indonésia
estava a disparar sobre os dois milhares de refugiados que tinham procurado
protecção junto ao muro exterior da UNAMET.
Os velhos, as mulheres e as crianças tentaram escapar, a maior parte
lançou-se para cima do arame farpado, rasgando o corpo, deixando os picos
cravados na roupa que vestiam. Vinham aos gritos, gritos que tinham o som do
mais puro medo, ensanguentados e desesperados. Os 700 homens da UNAMET
reagiram como um só: acariciaram as crianças, confortaram as mulheres,
tranquilizaram os homens. A imensa massa de timorenses que fugiu à morte
sentou-se no chão do auditório da UNAMET onde, dias antes, a Indonésia e os
líderes autonomistas tinham prometido respeitar o resultado da consulta.
Sentaram-se e começaram a rezar. Compreendi que estava a olhar para um povo
indefeso. Mais compreendi também que estava a olhar para um povo que nunca
capitularia por mais sangrento e prolongado que fosse o cerco.
Timor-Leste. Eram quatro, caminhando calmamente. Com autoridade,
cruzaram a barreira de mais de 200 polícias que nos guardavam, a nós, jornalistas
refugiados no hotel Mahakota. Sentados no «hall» exterior, seis ou sete, na
sua maior parte de cadeias internacionais, fumávamos uns cigarros e
discutíamos uma forma de sairmos dali e rodar pela cidade. Lembro-me que,
quanto mais eles se aproximavam, mais olhávamos uns para os outros.
No momento em que eles passaram a barreira e lhes vimos as armas nas mãos,
uma espécie de despertar estupefacto levou-nos a entrar no hotel e a
subirmos a escada que leva ao primeiro andar. Os quatro membros da milícia
Aitarak de Díli subiram ao «hall», colocaram-se em posição e começaram a
disparar sobre nós, rebentando com os vidros das portas. «Eles querem-nos e
não há aqui ninguém para nos proteger», disse o «cameraman» da Reuters.
Lembro-me de pensar que há apenas umas escassas horas atrás a ONU anunciara
que 78,5% dos timorenses tinham escolhido a independência e que eu contava
estar naquele momento encostado a uma esquina de uma rua a tirar notas sobre
a festa deste povo finalmente livre. Durante a noite passada, num Mahakota
abandonado e barricado, cada um tomou a sua opção. Para mim havia condições
para ficar, desde que conseguisse chegar ao quartel da UNAMET.
De manhã cedo, juntamente com Luciano Alvarez do «Público», o Hernâni
Carvalho da RTP e o Jorge Araújo do «Independente», com o João, o meu
motorista, ao volante do seu velho Land Rover verde alface, apanhámos uma
boleia de um comboio de viaturas do Alto Comissariado para os Refugiados e
avançámos por uma cidade deserta e patrulhada pelas milícias. Finalmente,
estávamos dentro do quartel-general da UNAMET, onde se respirava o cerco das
rajadas de metralhadora, disparadas de 10 em 10 minutos.
Os polícias e os funcionários civis não conseguiam esconder a raiva e a
impotência perante o recomeço da violência armada. Lá fora começaram a subir
as primeiras colunas de fumo provenientes de casas incendiadas. Rapidamente
se multiplicaram. Díli ardia. Comecei a telefonar às pessoas que tinha
conhecido, timorenses de sete metros de altura que me tinham contado a
história do seu povo e do seu país. O velho padre jesuíta João Felgueiras, o
activista dos direitos humanos Aniceto Guterres, a resistente Maria
Olandina, e todos os outros anónimos cidadãos de uma nação sem soberania. Do
outro lado da linha respondeu-me o silêncio.
Compreendi que as milícias e os indonésios tinham estendido uma cortina
negra sobre a operação que desencadeavam em todo o território. Pouco depois
das sete da tarde, já com a noite instalada, o tiroteio de metralhadora
rebentou mesmo ao lado do quartel-general. Só compreendi o que se passava
quando os gritos soaram mais forte do que as rajadas: a polícia indonésia
estava a disparar sobre os dois milhares de refugiados que tinham procurado
protecção junto ao muro exterior da UNAMET.
Os velhos, as mulheres e as crianças tentaram escapar, a maior parte
lançou-se para cima do arame farpado, rasgando o corpo, deixando os picos
cravados na roupa que vestiam. Vinham aos gritos, gritos que tinham o som do
mais puro medo, ensanguentados e desesperados. Os 700 homens da UNAMET
reagiram como um só: acariciaram as crianças, confortaram as mulheres,
tranquilizaram os homens. A imensa massa de timorenses que fugiu à morte
sentou-se no chão do auditório da UNAMET onde, dias antes, a Indonésia e os
líderes autonomistas tinham prometido respeitar o resultado da consulta.
Sentaram-se e começaram a rezar. Compreendi que estava a olhar para um povo
indefeso. Mais compreendi também que estava a olhar para um povo que nunca
capitularia por mais sangrento e prolongado que fosse o cerco.
Texto de JOSÉ VEGAR, enviado a Díli
Sáb. 11 Set 1999 00:00
Sem comentários:
Enviar um comentário