Memórias de Auschwitz
Vítor Mota
Ines Bromirski
Há 60 anos, num dia 27, o campo de concentração de Auschwitz foi libertado. Poucos saíram com vida. Ines Bromirski foi um deles. Polaco, com passaporte português, vive no Algarve. Tem cravado na pele um número de série. Tem cravado no coração um horror infinito.
Os dedos amarelados esmagam o cigarro numa lata antiga de creme Nívea que faz de cinzeiro. O fumo dança no ar, mistura-se com o cheiro adocicado da transpiração. O polaco Ines Bromirski não toma banho nem muda de roupa há dias. Tem nódoas espalhadas pela camisa amarrotada e o cabelo sujo em desalinho. Vive os últimos dias de vida sentado numa cadeira de rodas, abandonado entre um televisor que passa um filme alemão e os quatro cães a ladrar furiosamente no quintal.
A tosse é cavernosa, assustada. O vício da nicotina está a matá-lo. Limpa a boca com um lenço muito usado, deixando à vista as manchas na pele e um número tatuado a meio do braço esquerdo: 138824. “É a minha marca mais visível de Auschwitz”, conta o homem franzino de 85 anos que um dia trocou a fria Alemanha pelo sol algarvio.
Com ele, viajou na bagagem uma sombra incómoda: a do campo de concentração nazi que matou 1,5 milhões de prisioneiros e desnudou, como nunca antes, a crueldade da natureza humana. “Tenho um sonho recorrente: vejo um grupo de crianças a entrar para a câmara de gás de olhar inocente e um brinquedo na mão.” Quando fala do horror da guerra, a voz treme-lhe. Troca datas e memórias. Os olhos verdes ficam gigantes, as pupilas dilatam-se. “Durante um ano e meio vivi no maior Inferno da terra. Ainda hoje não sei como sobrevivi.”
PRÓXIMA ESTAÇÃO: AUSCHWITZ
Uma fotografia a preto-e-branco que guarda na estante da casa, na aldeia de Barão de São João, perto de Lagos, serve de pretexto para contar a juventude passada entre Bydgoszcz, a terra-natal, e Varsóvia. É a da primeira comunhão. Foi-lhe trazida recentemente por um padre polaco e um dos poucos amigos sobreviventes ao Holocausto. “Lembro-me do barulho das bombas alemãs a serem despejadas dos aviões. Andávamos sempre a fugir de um lado para o outro”, relata.
Bromirski, filho de um juiz e de uma ucraniana da média burguesia, não termina os estudos. Sem paciência para os calhamaços, aos 18 anos conduz um eléctrico na capital. “Ainda me recordo do número: o 852.”
Embora não estivesse metido em tertúlias políticas nem religiosas, também é perseguido incansavelmente pela Gestapo, depois dos nazis ocuparem o país. Veredicto: era judeu.
Numa madrugada de 1943 acorda com o barulho de portas a serem derrubadas, gritaria: “Mais de cem militares foram-me buscar a casa”. Verdade ou exagero, o que é certo é que quando dá por si, está a viajar num comboio apinhado de gente com destino a Auschwitz, perto de Cracóvia. “Éramos 1830 prisioneiros. Só sobreviveriam dez.” A reputação do campo gela-lhe o sangue: o polaco ouvira boatos sobre as famigeradas experiências genéticas de Josef Mengele, das câmaras de gás de Zyklon B e do Muro da Morte. “Incrivelmente, a maior parte das pessoas estava optimista. Era uma forma de nos agarrarmos à vida.”
Tem o primeiro minuto de terror ao ler a inscrição da fachada: ‘Arbeit Macht Frei’ (‘O Trabalho Liberta’). Os altos muros e os quilómetros de correntes de alta tensão acabam com as ilusões. “Nas primeiras noites não conseguia dormir. Acordava ao som dos tiros dos soldados que fuzilavam os prisioneiros. Tinha a certeza de que eu seria o seguinte.”
O dia-a-dia no campo de concentração não é muito diferente do de um coveiro: acorda todos os dias às quatro da manhã e passa o tempo a abrir valas e a partir pedra. “As coisas melhoraram quando os guardas descobriram que tinha jeito para consertar canos e arranjar cabos eléctricos. Inventei também que sabia construir modelos de aviões. Fui-me safando como podia.”
Nem todos tinham a sorte dele. Judeus e presos de delito comum eram forçados a trabalhos mais penosos. “Quem não morria na câmara de gás ou no Muro da Morte, morria de excesso de trabalho, ou de fome.”
O DIA DA MATANÇA
Todos os dias chegavam comboios cheios. “A Gestapo fazia uma selecção rápida: crianças, homens e mulheres eram logo separados.” Matavam primeiro os ciganos. “Eram dizimadas famílias inteiras”, recorda.
O ‘modus operandi’ repetia-se: os SS tiravam todos os objectos de valor dos presos, despiam-nos e prometiam-lhes banhos reconfortantes. Mal entravam nos duches, as porta eram trancadas. De seguida era introduzido o temível Ziklon. “Sempre que desaparecia mais um grupo de prisioneiros, o silêncio descia ao campo. Era atroz.”
A ração de pão e sopa a que era sujeito ia-lhe enfraquecendo o corpo e a moral. “Se no estômago não há nada, a cabeça funciona mal.” Em poucos meses, é mais um morto-vivo embrutecido pelo sadismo dos guardas. Um deles chegou a confessar-lhe que o dia estava a correr mal porque só matara onze pessoas. “As mulheres eram mais agressivas do que eles e não hesitavam em usar o chicote, ou dar-nos pontapés.” A humilhação não tinha limites.
Os prisioneiros deram um grito colectivo a 7 de Outubro de 1944. “Um grupo atirou pedras aos guardas, enquanto outros pegaram fogo ao edifício”, recorda com um brilho malicioso nos olhos. Bromirski participou também naquela espécie de Intifada, que terminou num mar de sangue. “Como poderíamos superar o poderio militar das SS?”, interroga-se antes de puxar mais um Marlboro Lights do maço, com as mãos trémulas. “Fomos dizimados.”
O polaco não se recorda de fazer amizades em Auschwitz. “Como poderia? Via toda a gente a morrer à minha volta.” Cumplicidades, talvez. Imperava a lei da sobrevivência. Para matar o vício do cigarrinho ou comprar as saborosas salsichas alemãs chegava a subornar guardas ou prisioneiros mais influentes: “Ali, tudo era possível de ser transaccionado, desde que houvesse algo para a troca ”
VER A LUZ DO SOL
A mulher, a portuguesa Madalena, que conheceu há 20 anos na Praia da Luz, interrompe o depoimento. Traz-nos uma garrafa de vinho tinto das Beiras. O polaco, que se orgulha do passaporte português, sorri. “Ah! O vosso Moscatel e o Porto são divinais”, exulta antes de tossir mais uma vez. A tuberculose foi mais uma das heranças trazidas do campo de concentração nazi. Nunca se curou totalmente. “Quando saí de lá, no final de 1944, pesava 25 quilos. Era só carne e osso. O médico deu-me dois meses de vida.”
De Auschwitz é transferido para uma prisão em Berlim. A brutalidade é a mesma. Nesse período, os alemães perdiam terreno para as tropas aliadas e não sabiam o que fazer aos prisioneiros: “Uns eram largados em barcos que acabavam por ser destruídos com torpedos.” O polaco escapa-se mais uma vez do cadafalso. “Ainda hoje me interrogo da minha sorte.”
A 8 de Maio de 1945, conhece finalmente o valor da palavra liberdade. A guerra termina com a derrota dos nazis. O resto é História.
Bromirski prefere continuar a viver em solo germânico e assiste à reconstrução do país. Termina o curso de Direito Económico, casa-se com uma alemã e tem um filho, Gregor – que hoje é militar na Alemanha. Mas em vez de seguir uma carreira e assentar, o polaco compra uma caravana e viaja pela Europa, sem destino. “Decidi fugir do frio a sete pés. Quando descobri o vosso sol fiquei maravilhado.”
Não é um homem saudável, sobrevivendo apenas com a pensão de invalidez. Não resiste no entanto à piada fácil da sua frágil condição: “A vida só é perigosa a partir dos 90 anos”.
A sala, onde guarda oito carabinas e quatro pistolas, é o refúgio espiritual. A televisão, o espelho do mundo: “Auschwitz está esquecido. Os miúdos novos não sabem nada do Holocausto. Basta ver as idiotices do príncipe Harry”, diz, num sotaque difícil de descodificar. Apesar de viver há vinte anos em Portugal, ainda mistura vocabulário alemão, italiano e russo. “Não é fácil a vossa língua, “confessa depois de mais uma baforada. O cinzeiro improvisado está atafulhado de beatas. Os dedos mais amarelos.
VIAGEM DE MÃO DADA COM A MORTE
A visita a Auschwitz era o ponto alto da viagem. O grupo estava animado e não se calou um segundo até chegar ao antigo campo de concentração. Depois, tudo mudou. A pouco e pouco, a boa disposição deu lugar ao nervoso miudinho, acabaram as anedotas e os sorrisos. A voz foi reduzida ao sussurro, passando a silêncio profundo assim que a fachada ‘Arbeit Macht Frei’ (’O trabalho torná-los-á livres’) ficou para trás. Ruído, só o do vento, o dos pés arrastados e o do estilhaçar das folhas caídas.
Os amontoados de cabelo, roupa, malas, óculos e sapatos dos milhares de homens, mulheres e crianças que perderam a vida em Auschwitz arrepiam-me. Não há lápides, nem corpos enterrados, mas sinto-me a vaguear num cemitério. As expressões das vítimas que forram as paredes dos blocos perturbam-me, a atmosfera das celas da cave sufoca-me. Quando recupero a consciência, é tarde de mais: perdi-me do grupo.
Volto à rua, olho para a direita e para a esquerda, mas nem sinal dos que me acompanhavam. Na incerteza, avanço em frente, não resisto a entrar no bloco seguinte. Um grito de desespero sobressalta todos os que ali estão. A jovem desfalece e deixa a sala nos braços de dois colegas. É polaca e sucumbiu diante de impressionantes fotografias de mulheres e crianças enfezadas pelas experiências do médico nazi Josef Mengele, o ‘Anjo da Morte’.
No crematório, onde a humidade escorre nas paredes enegrecidas pelo fogo e o odor a cinza parece resistir, o ambiente é ainda mais perturbador. Diante dos fornos por onde passaram milhares e milhares de corpos, há quem ceda ao choro e rasgue o silêncio com soluços de dor, dificultando o autocontrolo de quem, como eu, tenta a custo evitar fazê-lo. É difícil. Em Auschwitz a morte cola-se ao corpo. Toca-nos a alma. Em poucos sítios do Mundo ela estará tão presente.
Hugo Franco / Rui Hortelão
IN:Correio Da Manhã EDIÇÃO ONLINE
publicado por "caixinha" na comunidade msn POLICIAS&SEGURANÇA
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