terça-feira, agosto 17

O meu caderno de Sonhos

COISAS











De: 3330Folhinha (Mensagem original)
Enviado: 24/7/2004 16:19 e postado na nova COMUNIDADEmsn Almapoesia
(recomendada)





O Meu Caderno De Sonhos



O meu caderno de sonhos é o fiel das minhas noites teimosas… É o papel pardo dos dias, os dias perdidos no movimento ocular do tempo e é um qualquer papel reciclado onde as letras não se assustam com a pureza excessiva dos papéis de branco imaculados. No meu caderno de sonhos desenho o perfil das insónias por dormir, aquela persistência cega da realidade em se sentar no centro dos olhos e ficar ali a zelar por que nada escape ao cérebro arguto.

Deste papel espero a penumbra e o recolhimento. Da sua ausência de luz quero o silêncio enobrecido das aves que sobre si mesmas se recolhem em recurvada elipse. Estas aves que me habitam e piam na madrugada, rasgando em dois os meus membros que esses fingem repousar enquanto o cérebro finge que não dorme, mesmo se o faz... Extasia-se sim, com o preenchimento da noite, reinventando o modo como ela me veste o corpo de frenéticas luzes e clarões e farrapos de palavras ou orlas de frases enredadas.

As palavras visitam-me de braço dado, reinadias e provocadoras, subitamente proféticas mas fogem-me na sua volubilidade de absurdas aves da mente. Um papel, uma caneta, tacteio na noite um apoio onde os meus dedos esvaiam de si o meu delírio de imagens. Por vezes algo acontece e a frase é captada a meio do seu voo e fica ali no centro do papel, na sua verdade, subitamente menos universal. Normalmente a fuga foi mais célere que o meu tactear no escuro e a ideia desfez-se como foguete de lágrimas, cada palavrinha fugindo na sua impudência de luz , desfazendo-se a frase em meadas de fumo.

Os olhos assistem ao rumor do mundo sem sequer gritarem, impudicos na sua nudez de coisas feitas para olhar. Fechar os olhos seria selar o mundo e o mundo não se cala, na pomba que arrulha a sua solidão, nos periquitos que o acaso juntou e afinal são ambos machos, nas babilónicas luzes dos aparelhos electrónicos, Dvds, Tvs, rádios despertadores, tomadas, os milhares de luzinhas neónicas esverdeadas, avermelhadas, uma seara de papoilas acesas na noite pintalgando de insónias a escassez do meu quarto.

Alguém deixou o mundo aceso e esqueceu-se de me apagar a mim. Luto e renuncio. Abro o livro e deixo-me apanhar nas malhas do astuto narrador. Entro na personagem, embarco na sintaxe e o sono parte num comboio elíptico como o tempo. Parto para outro livro, daqueles infalíveis e que mastigo há séculos na persistência e teimosia de leitor que não se deixa vencer por narrativas pesadas e recusa a linearidade dos relatos. Mas mesmo esse adquire de súbito um sabor a romã no pino do estio em dia de sede maior…

Pela madrugada, ceifo-me à noite e procuro o perfume do sonho na suavidade da minha almofada. E então é ela que me fala e eu não resisto às suas palavras sensatas como raízes. Começa uma verdadeira procissão de gente a passear por mim. Caço-os, esmago-os, reduzo-os a nada, peneiro-os até ficarem só os que me habitam. Depois adormeço-os um a um na meia lua do meu barco e docemente me retiro dos seus inocentes sonos. Só então os meus olhos sopram o facho do mundo e os portais do tempo se fecham num eco longínquo…

Adormeço por fim, muito próxima do grito que receio me venha fazer saltar da sepultura e descobrir-me morta. De manhã, suspiro enrolada no primeiro raio de sol que me prendeu à vida. Apenas preciso pendurar docemente o sonho que afinal se abrigou em mim e procurar nos meus lençóis o perfume dos locais onde estive. Embriagada com a novidade dos sabores que a mente vadia me veio deixar sob a almofada, só posso erguer-me e caminhar. Já as portas do mundo se me abriram, acenando-me como faróis na costa. Lanço-me ao mar e vivo…



(A.D)







1 comentário:

Anónimo disse...

Mais uma comunidade que promete trazer muito de bom ao universo das Comunidades msn. Bem vinda Folhinha e Felicidades para ti e para a ALMA E POESIA.

 

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