Cenas tristes (O Irmão do Conde)
Lisboa – Benfica, fim de tarde do Inverno de 1989, Av. Tenente-coronel Ribeiro dos Reis.
- O trânsito não facilita nada… mais rápido ou perdemos o tipo.
- Calma que não vale a pena bater, senão é pior a emenda que o soneto.
- Raio, estes tipos não se mexem. Viste a matrícula? Nada só vi que era um Uno.
- Só faz azelhices o tipo, lá vai ele... palhaço!
- Esquece isso e não percas o tipo do Mercedes. Esse é que interessa.
- Vai ali, vai ali… entrou na Reinaldo dos Santos. Se entra na Segunda Circular, podemos dizer-lhe adeus, nem a matrícula lhe tiramos.
- Vou ligar as rotativas, atenção ao cruzamento, está vermelho.
- Dá-lhe uma “gaitada” que eles andam cegos… sai da frente pá, não vês os “pirilampos”?!
- Passámos, dá-lhe gás que ainda o estou a ver, vai mesmo para lá.
- Esta treta não anda mais… primeiro que desenvolva!
- Entra, entra, que o estou a ver. Entra e encosta tudo à esquerda. Se vai para a A-1, nada feito.
O velho e pesado Opel 2004 arrastava-se ao longo da Av. General Norton de Matos em perseguição do Mercedes 200 que tinha de ser interceptado antes de sair da área de acção do carro-patrulha (CP). Atrás de nós uma nuvem poluente despejada pelo escape, composta pelo menos de 50% de diesel mal carburado, 40 de óleo e a percentagem restante de difícil diagnóstico, formava uma cortina preta, certamente tão visível a partir do espaço quanto a Grande Muralha, retirando a visibilidade de quem nos precedia. Não fora a fumarada causada pelo combustível fóssil e qualquer um diria que era um veículo da Era dos Flinstones (a começar nos buracos no chão do mesmo e passando por outros que me escuso a comentar, este em tudo se assemelhava). O condutor do Mercedes aumentava a velocidade e a custo o charuto rodava, melhor arrastava-se na sua peugada, com a sirene ligada. Esta, além de ser abafada pelo ronco do motor Perkins, tinha um dos tons avariados. Desta forma, em vez de fazer o clássico Tii-Nóo-Nii, só debitava uns tímidos e afeminados agudos, “Tii” e “Nii” já que, o grave “Nóo” há muito que deixara de berrar. Como se não bastasse, aqueles apitos amaricados eram abafados pelos indescritíveis ruídos que saíam da lata da nívea. Realmente, ainda hoje questiono qual a força oculta que punha aquele cancro em movimento e qual a divindade que o ressuscitava sempre que lhe era encomendada a alma ao criador.
Apesar de ter sido uma autêntica corrida Lebre versus Tartaruga (sem quaisquer desprimor para os pachorrentos anfíbios), depois de guinar por entre os atónitos utentes da via, que ficavam basbaques a mirar o serpenteado preto que íamos deixando pela via, aproveitando uma fila de trânsito, aliás uma das crónicas filas da Av. General Norton de Matos, lá pusemos a lata a par do reluzente e garboso 200 fazendo sinal ao condutor para sair na próxima saída à direita e deter o carro. Isto claro, acompanhado de efusivos gestos com os braços, feitos pelo chefe da viatura e pelo tripulante, atrás deste. Tinha de ser assim pois os vidros do lado direito há muito que não abriam. Imobilizadas as viaturas, o condutor, visivelmente agastado com a algazarra e aparato, fuzilou-nos, melhor, metralhou-nos com o olhar e pela cara que fazia, dizia algo para a senhora que seguia ao seu lado que deduzo seriam palavras nada abonatórias para as nossas pessoas.
- Boa tarde Sr. Condutor.
- Boa tarde?! Vou aqui cheio de pressa e vem para aí com Boa Tarde? Fiz alguma asneira? Se fiz, deixe-se de sermões; disso e de vocês estou eu farto. Faça o favor de se despachar a passar a multa.
O indelicado homem (confesso que perante esta atitude, estou a ser benevolente), tinha uma visível aversão a polícias, resultado de alguma má experiência anterior com a autoridade o que acrescia de uma soberba directamente proporcional a um pavão em plena corte e má educação q.b. Por várias vezes o “afectado” se intitulou irmão de um Duque, famoso da nossa praça e familiar directo do titular ao trono da Nação, coisa que pouco nos tocava a nós, simples assalariados da República, apontando para o brasão da Monarquia Portuguesa aposto na traseira do automóvel. O arvorado do CP, impávido e sereno, talvez anestesiado pelos gases de escape da viatura, habituado a coisas bem piores, fitou o homem com a maior das calmas do mundo enquanto este desfiava um rosário de queixas, lamúrias e um sem fim de barbaridades. Vendo que os polícias nada faziam nem se lhe respondiam, ao fim de uns bons minutos, lá fechou a torneira das prosápias e parou a verborreia descabida. Nesse momento, até o ruído estrondoso do avião que nos sobrevoava em direcção à Portela parecia o suave canto de um canário.
- Já terminou? – questionou o Alves.
- Qual é o problema? Multa-me, diz o que fiz de mal ou vai ficar aí especado o resto do dia? Veja lá se decide que já estou atrasado que baste! Não basta furar a merda da roda, agora ainda tenho de levar com vocês. Não tem mais nada que fazer? É por ter um Mercedes, é? Diga lá qual é a multa e despachamos já isto. Cambada de incompetentes, vêm da parvónia armados em autoridade… nem falar sabem. Está bonito este país!...
- Bem, já que insiste, vou então autuá-lo… por não possuir o triângulo de pré-sinalização de perigo no veículo.
- É mesmo isso? Ora vejam lá – o irritante sujeito dirigiu-se à mala do carro, abriu-a e começou a remexer o interior – está aqui, vai ver. Não queria mais nada, não? Está aqui, meteu os pés pelas mãos…
Ao fim de muito rebuscar e remexer, o homem, lívido, com os olhos esbugalhados e as narinas dilatadas, tal era a dificuldade que tinha em expressar o que lhe ia pela alma, contornou o carro e dirigiu-se à mulher que inicialmente o acompanhara e incentivara a invectivar-nos, mas estava agora mais calada que um rato.
- O triângulo? Onde meteste a merda do triângulo?
- Na estrada, atrás do carro, onde mudaste a roda – a mulher enfrentou-o com semblante ofendido.
- E porque não o puseste outra vez dentro do carro?!?!... gritou o colérico infractor.
- Porque me mandaste entrar dentro do carro e disseste para não fazer mais nada.
- Agora vou ser multado porque não tenho a porra do triângulo. Além disso tenho de encontrar um sítio onde possa comprar outro. Só me arranjam destas.
Dirigiu-se ao Guarda Alves, de documentos em punho e este, em poucos instantes identificou o furibundo homem que não se calava.
- Não pode ser só pelo triângulo, eu sei. Mas não vou pagar, não vou, não. Eu tinha o triângulo e esqueci-me dele lá atrás – enquanto dizia isto, o Alves devolvia-lhe os documentos.
- Não vá lá; não vale
- Tem medo que eu conteste a multa, não é? E que leve testemunhas a tribunal a dizer que tinha o triângulo, lá onde mudei a roda, não é?
- Podem testemunhar, não me oponho, mas também testemunharão a nosso favor.
- Pois, “amiguinhos” pois, pois!!... Sei como isso funciona.
- Não, nada disso. Se tivesse calma há muito que já teria passado Vila Franca. O que se passou foi que essas pessoas viram-no arrancar com o carro e esquecer-se do triângulo na estrada. Depois, viram-nos passar, alertaram para o facto, indicaram o seu carro ainda ao fundo da rua e nós só viemos no seu encalço para entregá-lo ao dono. Foi por esta simples razão que o mandámos encostar – presenteou-o com uma irrepreensível continência, desejou-lhes um resto de bom-dia, entrou no carro patrulha e rematou antes de bater a porta do CP – Ah! Olhe que tem quinze dias para pagar a multa ou então deixe seguir para tribunal. Não se esqueça de fazer pisca quando arrancar, que não o fez quando foi mandado parar. Passa desta vez. Boa viagem.
O Nobre irmão do Conde, ficou ali, de pose perdida, braços caídos, a ver o CP partir. Numa mão a multa e na outra o triângulo que lhe deu origem.
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